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Onde estão os limites?

Superação de limites. Este é um dos termos mais ouvidos, e lidos, nos relatos dos atletas que terminam uma prova de endurance como o Ironman Brasil por exemplo. Mas se pararmos para pensar este termo carrega um importante pressuposto, o fato de existir um limite, uma barreira, um ponto final. Além disso, existe o paradoxo de que este limite é flexível e pode ser ultrapassado. Então se pudermos entender como isso é possível e mais importante, como determinar e estender este limite voluntariamente daremos ao atleta maior controle sobre sua resistência e seu desempenho.

Limite

Existem três teorias diferentes e complementares sobre quais seriam os fatores determinantes do colapso em exercícios de endurance. A primeira, e por muitos anos a principal, determina que a diminuição dos estoques de glicogênio, o aumento da concentração de lactato e a consequente fadiga muscular, impediriam o corpo de manter a intensidade do exercício. O que levaria a um colapso irreversível.

Embora bem demonstrados em estudos e pesquisas e correlacionadas a fadiga, duvidas sobre o papel destes fatores começaram a ser levantadas quando se deu inicio a das finais de provas de endurance. Momento em que, apesar de uma diminuição significativa nos estoques de energia e grande concentração de lactato no sangue, ciclistas eram capazes de aumentar a velocidade e intensidade do exercício acima dos valores “máximos” que a teoria da fadiga descreve ser possível.

Passou-se então a ser considerada a teoria do governador central, onde os fatores fisiológicos seriam apenas sinais que alertariam ao cérebro um risco eminente ao funcionamento do corpo e a vida. O cérebro começaria a ampliar a sensação de fadiga, obrigando o atleta a diminuir a intensidade do exercício. Com o final iminente do período de esforço e a certeza do cérebro de que ainda existe segurança para um aumento na intensidade sem riscos, os sinais de perigo cessariam e o atleta “encontraria” aquela energia final para um ultimo sprint.

Mas, onde estaria a capacidade voluntária para suportar intensidades duras ou ignorar os sinais de perigo? Neste momento aparece a teoria da percepção de esforço. Nela a capacidade do indivíduo de perceber uma determinada intensidade como mais ou menos desconfortável e de suportá-la por períodos maiores, determinaria a resistência do atleta a intensidade do exercício.

O exemplo clássico é o da trilha de brasas. Imagine uma trilha de brasas que termine ao final de um corredor em uma condição em que seja impossível chegar até a parede final. Cada atleta é capaz de caminhar por uma determinada distância até que seja impossível suportar o calor, as queimaduras e o desconforto e seja obrigado a sair da trilha. Neste caso, quanto maior a capacidade individual de suportar o sofrimento específico, mais próxima da parede a pessoa chegara.
Isto ocorre constantemente em uma prova como o Ironman. Quanto sofrimento somos capazes de suportar até “desistirmos” de manter a intensidade e sermos obrigados a diminuir para um ritmo mais confortável?

Você deve estar pensando: “Eu não desisto, a perna é que não vai mais no km 30!” Agora imagine que a organização mude o percurso e sinalize a chegada para dali a 200 ou 400 metros, com certeza você será capaz de aumentar a intensidade de seu ritmo. A questão é que você (ou o seu cérebro), já está calculando a intensidade que será capaz de manter para percorrer os próximos 12 km e finalizar a prova.

Esse processo se dá de forma diferente com os maratonistas quenianos que disputam a vitória, eles se programam para a intensidade necessária para vencer. Completar a prova ou fazer um bom tempo não é suficiente, se chegam nos 35km e percebem que não conseguirão manter a intensidade nos próximos 7km eles não diminuem o ritmo para administrar um top 5 ou top 10. Eles mantêm o ritmo intenso até os 37 km e depois “se arrastam” até o final mesmo perdendo muitas posições.

O mesmo costuma ocorrer na etapa do ciclismo profissional em Kona, muito dificilmente um profissional que quer brigar pela vitória seguirá o seu ritmo deixando o “trem de Kona” ir embora. A pessoa seguirá o grande grupo o quanto possível apostando em sua capacidade de se afetar menos por este ritmo na etapa da corrida.

Diferenças individuais

A percepção de esforço está muito ligada a características individuais como foco de atenção, nível de concentração, confiança do atleta e até a sua expectativa de desempenho. Quando falamos que um atleta tem facilidade natural para uma determinada modalidade, normalmente estamos falando desta percepção de esforço.

Para alguns a dificuldade de respiração e a sensação de braços pesados na natação é extremamente natural, enquanto que para outros, os primeiros sinais de hiperventilação já trazem a sensação de “está ficando difícil, não vou aguentar assim”.

No ciclismo a força muscular envolvida, a percepção do esforço do torque e das pernas queimando podem ser motivadoras e simples ou dar a impressão de que se está o tempo inteiro na subida e com os freios pegando. Na corrida a hiperventilação, batimento alto e o impacto excêntrico também podem ser percebidos como coisas simples ou extremamente ameaçadoras.

Por isso é difícil treinar as deficiências. Normalmente o trabalho desta modalidade implica em um sofrimento percebido muito maior do que na modalidade em que se é bom, mesmo que a intensidade seja proporcional. E quando se busca a proporcionalidade na percepção, normalmente se treina a deficiência com menos qualidade.

O foco e a concentração também determinam a percepção de esforço na medida em que desviam a atenção dos sinais de desconforto ou se concentram neles. Quando o atleta está concentrado em sua postura, técnica, ritmo e cadência a percepção de esforço tende a ser menor. Assim como quando o atleta está feliz, se divertindo e distraído em relação ao seu desempenho. Quando a concentração diminui, mas o foco se volta para a dificuldade, o sofrimento e as ameaças da situação, (perder posições, não atingir um objetivo de tempo ou colocação e até preocupação com as opiniões externas) a percepção de esforço aumenta exponencialmente e a intensidade passa a ser insustentável. O que se reforça pelos pensamentos negativos.

Outro aspecto com muita influência sobre esta percepção é a relação entre a confiança e a expectativa do atleta com a mesma. Uma determinada intensidade, por maior que ela seja ou esteja sendo percebida, não será superestimada se o atleta já passou por esta situação. Quando este sofrimento já lhe é familiar e ele sabe que por mais difícil que seja ele é capaz de suportá-lo até a linha de chegada, lidar com esta sensação se torna muito mais fácil. Por este motivo os treinos duros ou com o atleta cansado são tão importantes do ponto de vista psicológico quanto às competições preparatórias, sem descanso ou polimento específico.

A própria relação com a percepção de esforço pode ser um problema. Já vi em diversas provas atletas relatando que na hora em que largaram o corpo não respondeu, o ritmo estava fraco ou adequado ao ritmo realizado nos treinamentos, mas a sensação de esforço era muito grande e a intensidade não conseguiu ser mantida. E isso muitas vezes nas provas em que o atleta estava mais preparado e descansado o que leva a atribuição de causas a fatores como a viagem, noite mal dormida, alimentação ou ao planejamento de treinos e descanso com alguma falha.

O que vejo normalmente é que a própria percepção de esforço estava subdimensionada. O atleta bem treinado, descansado e se sentindo bem espera que as coisas sejam fáceis na hora da prova. Acreditam que o ritmo da natação se desenvolva sem esforço, que a alta voltagem seja natural e que as pernas estejam soltas na corrida.

O normal é que mesmo os melhores atletas estejam o tempo inteiro em um limite entre a fadiga e a intensidade. Esta sensação de dificuldade passa então a ser percebida como não natural, como sinal de que alguma coisa está errada. Mas na verdade o atleta treina para suportar a alta percepção de esforço na hora da prova e mantê-la até o final e não para que esta percepção seja baixa.

Olhando desta forma percebemos que a superação de limites existe porque a própria definição dos limites é primordialmente subjetiva. Chegamos a um limite da mente e da motivação para o sofrimento muito antes de chegarmos a um real limite físico. Mas mesmo que subjetivo este sofrimento é real. Limita tanto quanto a falta de treino ou alimentação e não é fácil de ser revertido uma vez que toma conta do corpo.

Não é “apenas algo da sua cabeça”, mas uma forte tradução da sintonia entre o corpo e a mente do atleta durante as provas de endurance.
E como fazem os atletas que controlam melhor esta percepção de esforço?

Vamos pegar o exemplo dos maratonistas. Os grandes corredores quenianos tem seu famoso treino de fartlek em Iten, onde todos os atletas começam juntos e o grande desafio é correr no ritmo dos mais fortes quantas vezes for possível até a incapacidade de manter este ritmo encerrar o treino do atleta.

No caso deles o foco não é apenas melhorar a capacidade física, mas ser capaz de correr em um ritmo que lhes permita vencer as provas por quanto tempo for possível. No treino seguinte tentam resistir ao menos uma volta a mais, determinando o seu limite e conhecendo sua capacidade de se manter nele pelo máximo de tempo possível.

O treino em grupo também facilita a diminuição desta percepção, o fato de existir um referencial externo “descansa” a percepção constante de ritmo necessária quando se está sozinho. Além disso, motiva a tolerância pelo fator da competitividade. Os motivos também contam muito, ficar no grupo principal para eles significa uma possibilidade de viver do esporte e até de um destaque na sociedade. Ser o mais rápido vale muito.

Porém cada atleta tem seus motivos individuais que podem ser competitivos, pessoais, de realização, satisfação, ligados ao prazer de realizar uma atividade de forma intensa e virtuosa. Cada um tem seus limites de tolerância, sua competitividade e capacidade de não perder o foco e se abalar com o esforço.

Quando buscamos unir todos estes fatores em nosso treinamento, mesmo que o ritmo esteja muito distante das pistas africanas, começamos a entender a subjetividade desta percepção e buscar formas de suportar um pouco mais para estender os limites que acreditávamos existir.

 

Arthur Marcondes

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